De mãos atadas e pulsos sangrantes.
Ainda assim, espero por ti.
Está sol lá fora.
Mas aqui dentro, é a Lei de Murphy.


É mais difícil dizer "o fim"
quando a viagem valeu a pena.

Infância

Lembro-me que guardavas, debaixo do teu colchão, milhares de pequenas coisas.
Levantavas o colchão, perante o meu ar de espanto, e agias como se fosse a coisa mais natural deste mundo.

E passados todos estes anos, não me lembro bem do que lá guardavas...
Mas lembro-me que havia pequenas regras de organização e, com toda a certeza, não era qualquer pequena coisa que ia lá parar. Devia ser necessário atingir um certo estatuto, atingir um grau de importância tal para ganhar um lugar naquele paraíso de memórias.

Quase consigo imaginar as batalhas travadas debaixo daquele colchão...desenhos, uma revista, um livro, um bilhete de entrada no Jardim Zoológico, milhares de pequenas coisas a lutar por um lugar cimeiro. Para que quando levantasses o colchão, as visses e me mostrasses como se fossem troféus.

Aposto que muitas das coisas que lá imagino nunca chegaram a existir. Fui apenas acrescentando lá as coisas...de tal modo que, na distância da infância, debaixo daquele colchão havia todo um mundo alternativo.
Calei-me.
Frente a ti faltam-me sempre as palavras.
Ou então são de sobra, e tropeçam umas nas outras no desalinho de um fio condutor qualquer.

Por isso, calei-me.
E ouvi-te.
E ouvi os nossos silêncios.

E escrutinei cada pequeno movimento das tuas mãos.
A forma como com elas desenhas certas palavras, a maneira (tão tua) de segurar o cigarro e brincar com ele nos dedos, sem te aperceberes e sem chegares quase a fumá-lo.
A forma como às vezes passas a mão no cabelo, a meio de uma frase e não chegas a terminá-la.
Ou como as escondes nos bolsos quando estás nervoso.

E enquanto o meu olhar passeava, a tentar perceber-te,
o teu poisava desconexo num ou outro movimento que te roubava a atenção.

E, sem que o esperasse, disseste:

Estás tão calada...
Fala. Gosto de te ouvir.
"the people are weary, unhappy, frustrated, the people are
bitter and vengeful, the people are deluded and fearful, the
people are angry and uninventive
and I drive among them on the freeway and they project
what is left of themselves in their manner of driving -
some more hateful, more thwarted than others -
some don't like to be passed, some attempt to keep others
from passing
- some attempt to block lane changes
- some hate cars of a newer, more expensive model
- others in these cars hate the older cars.

the freeway is a circus of cheap and pretty emotions, it's
humanity on the move, most of them coming from someplace
they
hated and going to another they hate just as much or
more.
the freeways are a lesson in what we have become and
most of the crashes and deaths are the collision
of incomplete beings, of pitiful and demented
lives.
when I drive the freeways I see the soul of humanity of
my city and it's ugly, ugly, ugly: the living have choked the
heart
away."


Charles Bukowski, drive through hell
Não digas que te esqueci. Que te perdoei. Que te arredondei aos cantos da memória para te absorver de maneira inocente, de maneira incoerente, de maneira a não ver-te.

Nem penses por um minuto que ainda penso nos teus minutos. E nos meus minutos, em que desesperava por alguns minutos teus.

Nem te ponhas com sorrisos, honestos, desonestos, sacanas até à medula. Não são nem metade do que julgas e os teus olhos não enganam ninguém.

Nem quando negavas o arrepio, o desconforto do confronto. Encostava-te à parede porque queria que, nesse arrepio que negavas, percebesses por fim que tudo tinha acabado.

Mas não digas que te esqueci.
Corro para eles como se fossem a minha salvação.
Como se o naufrago que sou,
a afogar-me num mar de incertezas,
conseguisse ainda vir à tona respirar.
Corro para eles.
Direita aos seus braços.
Aos sons que me consomem inteira.
E neles, enfim, a catarse.

Há momentos que, de tanta luz que teimam em transbordar,
entram por nós adentro...



Hoje.
Dia de Fado Português.
De sol.
De partilha.
De mostrar que há por que viver, por que sorrir.
De um simples encostar da cabeça no ombro.
E um beijo sentido.
De uma única palavra.
Da saudade em nós, por nós.
Desde sempre.
Para sempre.

As Chaves


Normalmente guardamos muitas connosco.
De diferentes tamanhos e feitios.
Umas mais a uso, outras já com ferrugem.
Outras esquecidas.


Guardamos connosco as chaves de todos os momentos felizes, de todas as memórias, de todas as dores, de todos os segredos trancados e das portas abertas de todos os segundos de partilhas.