Olhavam para o mesmo céu.
Um via nuvens cinzentas.
Outro, via-as brancas.
Outro ainda, via apenas as brechas azuis por entre as nuvens.
Tudo uma questão de daltonismo mental: cada um vê a cor que precisa de ver no mundo que o rodeia.

A mudança cola-se à minha pele.
E florescem em canteiros e janelas novos rumos.


Noite negra, fustigada pela chuva e pelo vento.
Até os faróis se diluem na difusa estrada à minha frente.
Rumo a casa. O rádio ligado.
E alguém repete, com a mesma intensidade da chuva que cai,
and it wears me out...

"Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não frutos,
pelo sonho é que vamos."


Sebastião da Gama

De novo aqui.
A cavalgar com o olhar a calma deste rio.
Outra vez.
Vejo que ele guardou todos os meus sonhos e que eles voltam agora à tona, cercando-me como seres marinhos adormecidos nas profundezas azuis.
E eu sorrio-lhes.
De novo.
Aqui.
A olhar para a outra margem.
A outra margem de tudo.

"Não entendeis que a realidade está do avesso?
Não entendeis que só para isso tendes mãos,
para a agarrar com força e pôr o avesso para dentro?
"
A. Casais Ribeiro
"...é essa a insuficiência das palavras ou, pelo contrário,
a sua condenação por duplicidade sistemática,
uma palavra mente, com a mesma palavra se diz a verdade,
não somos o que dizemos,
somos o crédito que nos dão."


Saramago, "O Ano da Morte de Ricardo Reis"
Às vezes dou por mim a pensar: 'sou de hábitos estranhos'.
Gosto, volta e meia, de dormir para o lado contrário. Viro a cabeça para os pés da cama, desfaço lençóis e lá vou eu, para uma nova perspectiva sobre o deixar-me adormecer.
Umas vezes durmo melhor. Outras, pior. Mas sinto que mudei e que posso voltar a fazê-lo se as voltas na cama são tantas que lhes perco a conta.
E os hábitos estranhos parecem-me, a meio da noite, normais. E o que acho estranho é que os outros não os tenham.

A chuva e o cinzento.
E toda a emoção e todas as memórias que elas podem conter.

Leio-te.
E penso-te.
Na multiplicidade dos momentos.
E desdobro-te à minha medida.
Mas volto a dobrar-te, com cuidado, para que não saibas sequer que te pensei.
Em mim. Para mim.