Bateu com a porta - perspectiva #2

Bateu com a porta.
De tal maneira que tudo estremeceu. O chão, os vidros, o seu peito. Foi a maneira que encontrou. A saída mais simples.
Porque já não sabia lutar. Ou talvez se tivesse esquecido. De lutar pelos laços que tinham criado, mantido, construído.

Nunca ninguém lhe disse. Excepto ele. Mil vezes, quantas mais? Tantas vezes o repetiu, até ao silêncio. Até ficar sem voz, até perceber que ela já não sabia lutar, já não queria lutar.

E tentou sozinho.
Queria, naquele instante, correr atrás dela, apanhá-la, agarrá-la. Beijá-la profundamente, como se isso fosse a solução. Como se isso fosse a saída. Mas ficou sentado, à espera das lágrimas que não chegavam. E deixou partir aquele ser estranho, que se tornou um estranho.

E na estanheza de tudo, na estranheza dos dois, não sabia se era essa a saída.

Bateu com a porta - perspectiva #1

Bateu com a porta.
O gesto definitivo e final de quem (acha) que fecha um capítulo. Para trás, todas as certezas. Não sabia se voltaria sequer para resgatar o que era seu. Provavelmente não. Agora, pelo menos, achava que não. Que não regressaria nunca.
Carregava incessantemente no botão do elevador e esperava que ele não a seguisse, que não abrisse a porta e desse com ela ali, ainda ali, ridiculamente à espera do elevador.
Continha as lágrimas. Não sabia se por não as ter, se por não as conseguir. E decidiu-se pela escada. Escura, raramente utilizada. Uma saída que sempre ali tinha estado. Mas que nunca tinha sido descoberta.
Deixava as certezas, os hábitos, os dias sempre iguais. Não sabia, então, que mais cedo ou mais tarde todos os dias se tornam relativamente iguais. Não se sentia desejada e, ao invés do que seria normal, o que ela já não suportava não eram os gritos, as palavras arrependidas mal eram proferidas. O que ela já não suportava eram os silêncios. A presença silenciosa daquele ser que se tinha tornado um estranho.
Desceu as escadas duas a duas. Uma saída. A única que conseguia ver. A única que quis ver.
E também há sorrisos, que de tão abertos e sinceros, iluminam e aquecem.
...mas afinal são as pontes.

Por nós erguidas, mantidas, suportadas, destemidas...

"Mankind is no Island"

As minhas coisas - parte III

Acordar sem despertador. Mesmo que seja cedo. Sentir o corpo na temperatura ideal, perfeita, aconchegante. Adormecer novamente para acordar depois e fazer tudo o resto com a calma que me é permitida.

O pequeno-almoço naquele sítio pequeno, acolhedor, diferente e perfeito.

A música alta, o acompanhar desafinado, enquanto se faz tudo o que não se fez durante a semana. Almoços de família.

Não ter planos para o resto do dia mas ter a liberdade para os traçar. Porque se é difícil manter o sorriso perante caras sempre cerradas, é também desarmante quando conseguimos fazê-lo.
E o difícil que é manter o sorriso frente a caras sempre cerradas.
Alguém diz: "nunca mais é quarta-feira".

Mas nunca mais é sexta. E nunca mais é ontem. E amanhã já é tarde. Nunca mais somos iguais. Nunca mais mudamos. Não voltamos ao princípio. Muito menos à forma primordial. Temos o mapa desactualizado. E a rede que ampara a queda tem um ou outro furo.

Mas quando for quarta-feira, damos por nós a ser capazes de fazer tudo outra vez.

A ansiar pela sexta. A repetir as coisas de ontem. A chegar mesmo a tempo. A sermos fiéis a nós mesmos. A mudar sem nos apercebermos. A fazer a volta completa. De volta a onde começámos. A desbravar caminho. E a apontar os novos trilhos descobertos. A ser grandes demais. Fortes demais. Corajosos demais para sequer pensar em escorregar por entre os furos da rede.

Bang bang...


...my baby shot me down.

As minhas coisas - parte II

Os filmes que mexem comigo. Não conseguir articular palavra à saída do cinema depois de um filme que mexeu comigo. Filmes sem pipocas.Os filmes tão bons que quase não acreditamos que existem. Os filmes que fazem parte da "lista". As frases míticas dos filmes. As cenas míticas dos filmes. Gente que nos derruba da cadeira quando aparece no ecrã.

A música que me acompanha sempre. Aquela que eu escolho e aquela que me encontra a mim. Tanta que não consigo enumerar. A música que me acentua a dor. E a que me rasga mais os sorrisos. A música extasiante e exorcizante dos concertos. As vozes roucas, as vozes míticas, as vozes inconfundíveis. As músicas de sempre. As músicas para sempre. O descobrir as letras, o decorá-las (mesmo quando não queria).

Ir de música nos ouvidos pelas ruas de Lisboa a criar filmes na minha cabeça.

E a sorrir.
... no fundo do peito bate calado...



...no peito dos desafinados também bate um coração.

As minhas coisas - parte I

O mar. A revolta do mar. A Costa Vicentina. A infinitude do oceano que me faz esquecer que, eventualmente, volta a haver terra.

Viajar. Fazer planos, traçar roteiros, criar listas. Londres, Paris, Madrid, Barcelona. Ir para fora cá dentro. Tentar ver tanto quanto possível. Estar nas filas e pensar a sorte que tenho. Estar frente a sítios míticos e não acreditar na sorte que tenho. Pensar nas viagens todas que ainda quero fazer, incluindo aquela de dois meses e meio, de carro, pela Europa, que até já tem roteiro traçado.

O cheiro das castanhas assadas. O sabor das castanhas assadas. Nas ruas de Lisboa. Descascá-las ainda demasiado quentes e comê-las ainda demasiado quentes. E chupar o sal e a cinza dos dedos no final.

Os dias muito frios, mas com sol. Os dias de sol inesperado. O entardecer. As noites quentes. Prolongadas, com conversa, com vinho, com mais ou menos gente, com a gente que importa lá.

Rir com vontade, rir com prazer, rir até não conseguir parar, até doerem os músculos da cara, a barriga. Ter ataques de riso com outra pessoa por motivos que mais ninguém percebe. Rir de coisas absurdas, rir das coisas simples. E sorrir, no final.

...e 2010 começou assim. Junto ao mar.