Desconstrui-me. Como faço habitualmente, quando o calor é tão sufocante nas quatro paredes que me vejo forçado a procurar forças em lugares inesperados. Aí chegado, sento-me numa qualquer sombra onde consiga perceber uma brisa, por pequena que seja. Cravo os pés na areia, no chão de ripas de madeira ou empoleiro-os descontraidamente numa outra cadeira à minha frente. Com o fim da tarde que se aproxima, os corpos tostados vão rumar a casa carregados de sal e carregados com a paciência que não têm no resto do ano para ficar presos em filinhas certeiras e empoeiradas. Só quando poucos resistem no areal e as sombras se alongam pelo areal é que eu rumo ao mar, onde entro sem indecisões e mergulho por baixo da primeira onda que vem direito a mim.

E desconstruo-me. Peça por peça. Arranco-as calmamente e elas afundam-se devagar. Depois de totalmente desconstruído, cravo os olhos no céu e fico a boiar por uns minutos ao sabor da corrente. Submerso, oiço unicamente a cadência das ondas ao longe e, mais presente que nunca, forte e calma, a minha própria respiração. Encho o peito de ar e, com todo o impulso que consigo ganhar, mergulho e apanho rapidamente todas as peças do fundo do mar. Assim mesmo, com um único fôlego.

Regresso a terra já inteiro, reconstruído e recriado. Renascido, com sal, água, areia, tudo. Sinto com as mãos cada poro, cada trilho, para ter a certeza que tudo está no lugar devido.
E só aí percebo que me falta um pedaço. Um pedaço que me escapou, que terá sido arrastado pela corrente. Um pedaço que alguém pode muito bem ter visto, apanhado, colocado num outro corpo. Alguém andará agora por aí com um pedaço a mais. Um pedaço de mim.

Balões de Pensamento

Há não muito tempo atrás, numa conversa descontraída, surgiu a ideia: e se tivéssemos balões de pensamento acoplados? Assim mesmo daqueles que vimos na B.D. Balões que revelariam os nossos verdadeiros pensamentos. Um "não" pensado quando os nossos lábios dizem "sim". O que verdadeiramente pensamos em determinadas circunstâncias e por onde a nossa mente às vezes divaga enquanto conseguimos manter, simultaneamente, uma qualquer conversa.

Eu consigo até imaginá-los, imaginar-nos, a andar por aí de balões de pensamento atrás, presos por um cordel, a sobrevoar as nossas cabeças, acompanhando-nos num voo raso. Balões brancos, mais ou menos cheios consoante tenhamos mais ou menos clareza de espírito.

Balões de pensamento cheios de sonhos quando adormecemos, de resmungos quando acordamos, de divagações enquanto conduzimos para o trabalho. Cheios de trauteares de músicas e de melodias irritantes que não nos saem da cabeça. Cheios de conversas verdadeiras, de mentiras inocentes e de uma ou outra palavra que, volta e meia, os outros mereceriam ouvir. Vazios quando nos desiludem. Vazios quando já não há mais nada a dizer. E cheios novamente quando o tanto que há para dizer pode preencher mais que um balão pela vida fora.
Image by Exploding Dog


"What came first, the music or the misery? Did I listen to music because I was miserable? Or was I miserable because I listened to music? Do all those records turn you into a melancholy person?
People worry about kids playing with guns, and teenagers watching violent videos; we are scared that some sort of culture of violence will take them over. Nobody worries about kids listening to thousands - literally thousands - of songs about broken hearts and rejection and pain and misery and loss."

in High Fidelity, Nick Hornby

Olho para o chão. Contemplo os estilhaços. Estão espalhados por todo o lado, à minha volta. Tenho medo de me mexer, não vá eu pisar algum. Inspiro profundamente e ganho coragem para a hercúlea tarefa de os apanhar do chão. Mais uma vez.

Apanho-os, pego com cuidado, um por um, nos pedaços de mim mesma. Observo-os com atenção, tentando perceber até que ponto sobreviveram. Alguns devolvem-me um reflexo que me é estranho, como se não conseguisse reconhecer-me nele. Junto-os a todos e começo a montar o puzzle.

Cabeça, tronco e membros. Estes são os mais fáceis. Umas quantas nódoas negras, um ou outro corte. Nada que um penso rápido e uns dias de repouso não curem. O pior vem depois. As brechas na armadura, a vulnerabilidade cada vez mais à tona. As camadas protectoras a desaparecerem a cada nova queda. Parece-me também que, desta vez, ou ou outro sonho conseguiram fugir. Isto de cair constantemente ao chão começa a deixar sequelas. E começa a não ter muita piada.

Começo, então, a montar o puzzle. E já o conheço quase de cor. As linhas, os contornos, os fios do pensamento. Já arranjei maneira de dar voltas, contornar os hábitos, exaltar as virtudes, remeter os receios para os recantos mais escuros. No final, por mais que tente fazer as coisas de forma diferente, o resultado final é sempre o mesmo.

E cá estou, inteira outra vez, pronta para a luta.

E é quando me meto ao caminho que me apercebo: há um pedaço em mim que não me pertence...apanhei, sem ter reparado, um pedaço de outro alguém.
Na mesa ao lado...

L - Ouve, já me provaste por 'a + b' o teu ponto de vista. Já o percebi. Aliás, percebi-o logo à primeira explicação.

B - Então, concordas.

L - Não, não concordo.

B - A sério, é impossível ter uma conversa contigo!

L - Não, não é. O que se está a passar há 30 minutos não é uma conversa. É um monólogo.

... Suponho que às vezes deve custar ouvir estas verdades.
Teimosia não é ser-se inteiro.
Teimosia é estar constantemente a apanhar os pedaços de nós de cada vez que caem, despedaçados, no chão.

Life in a Day, Christiaan Van Vuuren

Podes falar quanto quiseres do estado das ondas, do vento de noroeste.
Dissertar sobre os milénios dos grãos de areia ou das escarpas vertiginosas.
Podes contar-me detalhes maravilhosos sobre a vida aquática, o enorme desconhecido, cavalos marinhos e estrelas do mar.

Não vou interromper-te quando começares a divagar sobre os raios UV, sobre a sombra e as horas certas de exposição solar. Vou deixar que dissertes acerca dos melhores locais, das praias onde todos estão e onde todos devem estar.

Porque, tão simplesmente, nunca conseguirás perceber o prazer que sinto ao entrar no mar.
Juro que já tentei de tudo. Amordaçá-la, amarrá-la, algemá-la, comprimidos para dormir, tentei distraí-la com histórias ridículas e, por fim, dei-lhe um bilhete só de ida para uma praia paradisíaca e longínqua onde pudesse apanhar o sol que quisesse e me deixasse em paz.

Mas não. Continua aqui. Teimosa, perseverante. A aparecer nos momentos mais inesperados, como quando quero manter um fio de discurso coerente, quando preciso de me concentrar ou quando pura e simplesmente quero dormir.

Nem sequer se preocupa em aparecer sorrateiramente. Instala-se, impõe a sua presença e, mesmo calada, consegue tirar-me do sério.

É a única das personagens que trago na minha cabeça que não me obedece.
Ultimamente diz que quer ser a personagem principal da próxima história ou "irão haver represálias".

Juro que já não sei que lhe fazer.
Aceito propostas, ideias, opiniões.
Entrego-a de bom grado a quem lhe queira dar abrigo nos recantos da imaginação ou nas páginas de um livro. Mas não posso deixar de dizer que ela carrega muita bagagem.

O fim de tarde quente dá-me para isto: pensamentos leves, frescos, ao sabor da corrente e da torrente do pensamento.

Dá-me para perceber que gosto de Sumol de ananás porque é uma viagem directa às garrafas verdes de onde o bebia na infância.
Dá-me para gostar de novos temperos e sabores, de conversas novas e de conversas renovadas.
Dá-me para deixar para amanhã.
Dá-me para litros de água fresca que não me mata a sede mas que me sabe bem.
Dá-me para andar sem rumo à procura da brisa, de uma corrente de ar, de uma porta aberta que convide a entrar.
E para músicas de Verão, com batidas e refrões mais pipoqueiros que os filmes da estação.
Dá-me para sonhar acordada e achar que sou capaz de tudo mas que amanhã trato disso.
Dá-me para fazer planos em cima do joelho e impulsos no último minuto.
Dá-me para renovar amizades, prolongar amizades, confirmar amizades.
Gosto do fim da tarde quente. Dá-me para pôr o mundo em câmera lenta e limitar-me ao por do sol.


Trazia o cabelo preso numa trança e uma infinidade de missangas em torno dos pulsos.
Deitei-me a adivinhar-lhe o passado e presente.
Guardei para ela o futuro, que o saberá, melhor do que eu, ler na palma da mão.

No olhar de menina, a novidade do mundo.
No sorriso sincero, a alma gentil.
O bronze da pele lembrava-me os sonhos,
guardados e cuidados,
cultivados devagar.

Observava, ao largo, o gingar do mundo,
o balanço da multidão,
o compasso das ondas imaginadas.

E ver-se assim, reflectida no espelho, assustava-a de muitas maneiras, pelo impacto real de tudo quanto era e tudo quanto queria ser.
Dois passos em frente.
É quanto basta.