Cai-lhe a chuva na palma da mão. Mas não a desvia.
Sente-lhe os caminhos que percorreu e os sulcos que desbravou.
Vira-a e revira-a, dá-lhe nomes e idades distintas.
E sente-a fria, e sente o frio.
Que vai lá fora, que lhe vai por dentro.
E esquece a chuva, aconchega a roupa, fecha mais um botão, encolhe-se mais e procura o seu próprio calor.
Perdido e achado por entre os vincos da roupa e as rugas da alma.
Velha de sabedoria, cansada de saber.

"...'cause I worked and I cursed and I cried..."

A Espera


Estou sentada. À espera.
Ordeno os pensamentos e ensaio mentalmente o discurso.
Uma vez mais, mil vezes mais.
Aglutino as palavras ordeiramente, frases, parágrafos, capítulos inteiros para conseguir chegar onde quero.
Ao fim.
A ti.

Repito mil vezes as mesmas lógicas, as mesmas conclusões, para que se solidifiquem na minha mente. Para que não fraqueje na hora em que terei que dizê-las à tua frente.

Aqui, sentada, sob a luz do candeeiro da rua, racional e confiante.

Depois, no traiçoeiro calor das tuas quatro paredes, esvaem-se as forças, as verdades e varrem-se as palavras ensaiadas para chegar ao fim.
A ti.

Concentro-me, fecho os olhos, cerro os pulsos.
Cá vai, tarde demais.
Tímidos, a princípio.
Impetuosos, impiedosos, a arrancar-me de mim.
Sem defesas, sem forças
- sem querer sequer lutar -
entrego-me ao minimalismo irresistível, impossível,
do compasso da tua respiração.

Mais tarde, depois da batalha inebriante nos teus lábios,
quando dormes,
pego no marcador e escrevo no teu pulso mais um pensamento
para que sejas ainda e sempre meu.

Não tenhas medo.
Perseveramos na tormenta.
E pertence-mo-nos.
"Sei desde o início:
na solidão, é-me impossível fugir de mim próprio.
"

J.L.Peixoto
Posso roubar-lhe dois minutos?

Parei. Pensei.
Tanto tempo desperdiçado em momentos inúteis, em conversas sem nexo.
Em tentativas infrutíferas, em explicações desnecessárias.
A procrastinar, a sonhar acordada, a contemplar o infinito ou o vazio.

Tanto tempo perdido a dizer não, a dizer talvez, a dizer nunca. E se todos esses minutos valeram a pena...

... Pode.

Do outro lado, um olhar de espanto, um sorriso e alguém apanhado completamente desprevenido.
Acorda. Levanta-se.
Sai devagar da cama para não a acordar.
Encosta a porta, o duche do costume, água a escaldar sobre os ombros, a sacudir o resto dos sonhos pelo cano abaixo.
Depois abre as gavetas, escolhe uma gravata e um ou outro sorriso para levar na algibeira.


Nunca se sabe.

Bebe um café, pega nas chaves e deixa-lhe um bilhete:

Não escrevas em mim os teus pensamentos. Porque me fazes sentir teu. E eu tenho medo.


Falasses tu e que segredos partilharias?
Que torrente de palavras,
guardada
selada
adormecida?

Todos os teus medos, as tuas forças
A coragem inebriante das tuas águas?
Dos teus lábios?


I'm still here, Pearl Jam
(cortesia de um Bandido, R. F.)

Desalinho II


As horas, os minutos, subjectivos.
Amarrados, mas decididos e perseverantes.
Na tormenta.

Esticam o infinito do presente
feito de esperas,
de ausências,
de entrelinhas.
Se o imediatismo dos pensamento está em desalinho
Contraria-se a vontade dos dedos em discorrerem sobre as linhas profundas da carne.

Aconchegam-se mais à pele as sombras do teu olhar
que a memória guarda locais inesperados.

E o desalinho dos dedos a discorrerem
a memória
a pele

À procura da vontade
das sombras
de ti.

Desalinho

Who's your daddy?!