Tinha sido apenas um passo em falso.
Um movimento mal calculado.
Um pé que tinha resvalado, deixando em tensão todos os outros músculos para aguentar a pressão.
Mas tinha sido o suficiente para trazer de volta a vertiginosa presença do abismo.

Escalamos montanhas todos os dias.
Mas esquecemo-nos quase sempre do arnês de segurança.
Não ficamos surpreendidos.
Antes ficamos agradecidos quando sabemos que temos alguém a olhar pelo nosso sistema de segurança, a verificar cada nó, a dizer “tu sabes que consegues escalar mais esta montanha”.
Quando esse alguém não nos deixa cair.

Nothing is trivial


The Crow, 1994

Norte


Falas do Sul. E eu respondo-te:

norte, s.m.ponto cardeal situado na direcção da Estrela Polar, considerado o ponto de orientação de referência e designado pelo símbolo N; vento que sopra desse ponto; pólo árctico;[com maiúscula] região ou regiões setentrionais; figurado: destino, guia, rumo, direcção.

Porque é o norte que orienta bússola.
Porque é a norte que o vento corre mais fresco e cria correntes de ar por nós adentro, que limpam os quatro cantos do coração.

Porque se rumamos a sul, é porque podemos voltar as costas ao norte, sabendo que o seu magnetismo, cedo ou tarde, nos voltará a atrair...por muita deambulação que façamos pelos outros pontos cardeais: o caminho certo será sempre para lá.

Frágil

Pega-se numa caixa de cartão.
Usada porque, como se sabe, se já suportou outros pesos e caminhos é porque com toda a certeza aguenta mais um.

Começam a retirar-se coisas das prateleiras e dos armários. Protegem-se para aumentar a probabilidade de chegarem salvas ao destino.
Pouco a pouco, enche-se a caixa com o tudo e o nada que não podemos deixar para trás.

Fecha-se a caixa. Escreve-se "Frágil".
E é isso que ela leva consigo: a fragilidade dos laços humanos e da nossa luta por mantê-los.

Ontem, a contrariar os últimos tempos.
Aproveitei todos os minutos do dia.
E da noite.
Preenchi-os.
Ontem foi um dia bom.
E eu fui feliz.

Ponho a música nos ouvidos. Na cabeça. No coração.
Tudo à volta se cala.
Na areia que aquece,
no mar que, incessante, estremece,
todos se movem ao ritmo do meu som.

E o som sobe - a temperatura também - e sinto que cada grão de areia está exactamente onde deveria estar. E cada olhar pousa exactamente no centímetro de pele onde não devia pousar.

Da praia vazia resta uma vaga ideia (e uma foto também).
Todos se movem agora sob o círculo perfeito da minha música. Todas as ondas acertam o compasso. A ínfima brisa desafia, em vão, o rebordo de cada chapéu de sol.

Inacreditável...
Que toda a energia que emana do sol e do mar pareçam entrar-me pela pele adentro.
Há quanto tempo não te sentia assim?
E as saudades deste sabor?
Da leveza do corpo suspenso no infinito à minha frente.
E o frio da água quando mergulho de cabeça, poucos segundos depois de ter apenas molhado a ponta dos pés.
Nunca gostei de esperar quando estou frente ao mar.
O desejo é demasiado para esperar que todas as ondas passem ou que deixe de sentir o arrepio.
Vou pousar a caneta. Vou só ali ao mar e já volto.

The worst part of having too much time on your hands is that you end up procrastinating.
And you end up thinking of all the things you shouldn't be thinking of in the first place.

Too much. Too often.


Em vez da silly season, a lazy season.
Em que o corpo se arrasta na beira do calor,
a mente divaga por caminhos lânguidos e quentes,
a música derrapa em repeat,
os pés pousam em sítios interditos,
e o coração também.

Opening Scenes - Fuckin' A #1


Trainspotting, Danny Boyle


Uma vez mais, a tentar tecer uma teia impossível e improvável.
A contar pelos nós dos dedos, a desfiar o novelo das horas.

Good Ridance


O regresso



O dificil é, por osmose, absorver a limpidez destas águas, destas paragens, destes dias e, no regresso, levar as certezas de volta.

Há os momentos certos.
Em que encontramos a chave certa.