Crash into me



(Nota: há algum tempo atrás descobri que, ao ouvir esta e aquela música, nasciam em mim pequenas histórias. Ao som de Crash Into Me, de Dave Matthews Band, nasceu esta...)
Olho pela montra e sei que já não vou a horas de passar por ti. De certeza que o lugar no metro ao lado do teu não vai estar vazio, mas de qualquer forma já não te consigo apanhar. Ontem foi diferente. Consegui sair da loja dois segundos depois de cruzares a esquina ao cimo da rua. Vinhas, como sempre, com o teu livro na mão e a tua música nos ouvidos. Ainda pensei em sorrir-te mas não fui capaz. Olhei para o relógio e pus-me a caminho da estação de metro, mal contendo a vontade de olhar por cima do ombro para te poder ver. O mais difícil é conseguir ficar ao teu lado, atrás de ti, à tua frente, onde quer que seja desde que esteja perto de ti, sem que repares que o faço de propósito. Farto-me de pensar se não terás já reparado que o faço. É tão óbvio.

A viagem não é longa mas tento, cada dia em que viajo ao pé de ti, ver um novo pormenor que ainda não tinha reparado. Mata-me de curiosidade não saber que música estás a ouvir. Gosto de pensar no que poderás estar a ouvir de acordo com o teu semblante. Um ligeiríssimo sorriso, um imperceptível abanar de cabeça ao compasso da música, o olhar perdido no vazio dos túneis do metro. Depois vejo-te levantar e sair e nem quero acreditar que sonho acordado todos os dias da semana. Devia ter idade para ter juízo, já tenho idade para me chegar ao pé de ti e inventar um pretexto qualquer para falar contigo.

Sonho acordado enquanto registo os preços no balcão da loja. Faço esquemas mentais, planos inconsequentes e conversas que poderíamos ter. Passo os dias assim, entre etiquetas de preços – “é para oferecer?” – e deambulações que me levam até mais perto de ti.

Já no final da Primavera, o que começou por ser uma manhã soalheira descambou num meio dia quente e nublado e acabou num final de tarde ventoso que rebentou num dilúvio. As ruas de Lisboa são lavadas pela chuva e uma senhora de idade passa por mim a dizer “já ninguém pode confiar no tempo…já não há estações do ano”. A mesma senhora levava umas sandálias ortopédicas abertas e os pés, por certo, já encharcados. Tentava cobrir, em vão, a permanente que fez, com toda a certeza, nessa tarde, com um folheto de propaganda de um hipermercado qualquer. Eu reparava nestes pormenores enquanto me preparava para encarar, sem chapéu-de-chuva, o caminho até à estação de metro. As várias poças de água pelo caminho requeriam toda a minha atenção e capacidade de manobra para conseguir evitá-las e escapar ainda aos rios que escorriam das goteiras dos prédios. Só queria chegar a casa. Faltava pouco para chegar à estação de metro, “uns 100 metros e já está” – pensava eu – mas o sinal para peões ficou vermelho. Devo ser das poucas pessoas que não atravessa a estrada quando o sinal fica vermelho. E, assim, ali fiquei. Parado. Á chuva. A pensar na ruína em ficaria a minha roupa.

Depois a chuva parou de cair. Mas deixou de cair apenas sobre mim, porque à minha volta tudo continuava igual. Uma coisa já sei sobre ti: és uma mulher precavida, não te esqueceste do chapéu-de-chuva. Retiraste-o da tua mala – dessas cujo conteúdo é um universo fascinante de prescindíveis e imprescindíveis – abriste-o sob a chuva e, ao chegar ao sinal vermelho, paraste ao meu lado – tão perto – e puseste-o sobre mim.

Éramos dois estranhos sob um pequeno chapéu-de-chuva preto, nessa tarde. Olhámos um para o outro e sorriste para mim. No fim, foste tu que escolheste chocar comigo.

1 comments:

Anônimo disse...

Lindo.

Rui