Nota de Rodapé

"Enquanto o espelho me reflectia os olhos(10), ouviam-se ao longe as escalas incertas de um saxofonista da banda, ensaio solitário, buzina dentro do nevoeiro.


(10)
Ao fixar o reflexo dos meus olhos no espelho, já me pareceu muitas vezes que está outra pessoa dentro deles. Observa-me, julga-me, mas não tem voz para se exprimir. Será talvez eu com outra idade, criança ou velho: inocente, magoado por me ver a destruir todos os meus sonhos; ou amargo, a culpar-me pela construção lenta dos seus ressentimentos. Seria melhor se tivesse palavras para dizer-me, mas não. Só aquele olhar lhe pertence. É lá que está prisioneiro."

J. Luís Peixoto, Livro

6 comments:

CarMG disse...

Seria melhor se tivesse palavras para falar! Dessa maneira, não deixaria espaço a inseguranças que vêm de tudo aquilo que não é dito. Prisioneiro não é o olhar, mas o pensamento que encarcera.

Lina disse...

Sim, melhor seria se falasse e deixasse de parte o mero olhar de julgamento.
"Prisioneiro não é o olhar, mas o pensamento que encarcera."... não o teria dito melhor!
:)

Blogadinha disse...

O corpo é aluguer para sete idades, diferentes entre si, unas na alma - não as dispas em frente ao espelho. Nunca foi bom conselheiro...

Lina disse...

Sábias palavras!
E não é barato, esse aluguer. Já por aqui tive um T1 no ventrículo esquerdo para alugar e foi história que deu pano para muitas mangas, umas mais curtas que outras, todas devidamente vistoriadas frente ao espelho (esse terrível e temível conselheiro...).
**

I disse...

Humm, cada vez com mais vontade de pegar neste livro. Porém, concordo com a Blogadinha...desconfiar do que nos mostra o espelho! Acho sempre que o que nos vemos não é bem o que os outros vêem...

Lina disse...

Não, o que vemos nunca é o que os outros vêem. O nosso olhar é por norma muito mais crítico, ríspido e devastador. E se não tratarmos o espelho com jeitinho ele não está com meias medidas...


(Sou suspeita perante Peixoto, mas devias, I. :) )